terça-feira, 9 de novembro de 2010

“Mãe e filho” de Alexander Sokúrov (1996)

A fotografia e O cinema. A mãe e o filho?

“...um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a "mensagem" do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura” (BARTHES, Roland. A morte do autor In. O rumor da língua)

Diante das inúmeras formas de ler “o mundo”, ou “um filme”, neste caso, este filme “Mãe e filho”, pareceu-me inevitável fazer relação com o cinema e a fotografia. Sokúrov nos apresenta um paradoxo, um filme-contraste, um filme de diferenças e semelhanças, de movimentos e silêncios. Um filme de morte e de vida.

Já no primeiro plano vemos uma composição curiosa: uma imagem estática, um casal que conversa, envolvido pela escuridão, onde o contraste claro/escuro típico de uma pintura, é emoldurado pelo formato retangular de qualquer tela de projeção. Se não fosse o diálogo contido e os movimentos sutis, poderíamos estar diante de uma tela de tinta à óleo.

Sobre o que conversavam? Sobre sonhos (ou pesadelos). A mulher, a mãe, já velha e enferma, revela seus temores diante de um sonho/pesadelo que sempre se repete: uma sensação incômoda de prisão. O homem, o filho, ainda que jovem e viril, compartilha do mesmo pesadelo e temor. Se este diálogo pudesse representar todos os elementos que compõem a fotografia ou o cinema (onde o movimento é pura ilusão), eu sentiria o mesmo temor. É quase como ter vida própria num espaço limitado de tempo e lugar. É quase como dar vida às imagens mortas e congeladas no tempo, compondo personagens, histórias e diálogos. É como entrar em sintonia com o diretor e compartilhar das mesmas “pirações” e/ou inventá-las. Imagine se pudéssemos ouvir o que as imagens nos dizem! Falariam dos seus medos? Da sensação estranha de aprisionamento? Do pavor da morte? Saberiam quem são e o que fazem naquele lugar? Tão escuro e distante? Tão limitado e estranho? Nessa leitura seria o possível punctum? Minha forma de ver e imaginar?

Uma mãe enferma, imóvel, dependente de um filho, jovem, ágil e solidário. Uma mãe que resiste ao tempo, cruel e veloz. Por vezes não entende porque ainda existe, tão velha e cansada. Teme e deseja a morte. Sente-se inútil e um fardo para o filho. Para que existir? Mas o filho é solidário e amoroso. Ainda que ela não consiga mais caminhar sozinha, ele a carrega. Ele a leva e a movimenta em seus braços, ainda que ela permaneça imóvel. Sempre imóvel. Reconhece em si mesmo, a importância da mãe, sua origem. Para o cinema existir, a fotografia foi o caminho, o marco, e agora é vestígio. O cinema carrega nos braços, aquela que o originou e mesmo que algum dia a recuse, jamais poderá negar sua origem (como qualquer filho).

O filho por vezes sai de cena, fora de campo, coisa possível somente no cinema. A fotografia estática, a mãe, permanece sempre estática, enferma, imóvel. A paisagem que os envolve é como uma pintura ou uma limitada moldura de projeção, mas o filho e o som se movimentam constantemente. Sempre há som. Possível prova de movimento constante? Ainda que fora de campo ou manipulado na edição, sempre há o som. Som de um trem, de pássaros, de passos, sons da vida, constante, móvel, ágil.

O filho quer alimentar a mãe, como o movimento que ânsia por mover, carregar e salvar o estático. Já crescido, independente, livre, mas eternamente grato. A mãe por vezes se recusa a comer. Está cansada de ser carregada. De ser enferma, de estar viva. Por vezes relembra sua própria origem, na casinha distante, envolvida pela paisagem serena, ao som dos pássaros e grilos. Lembra de quando era viva e quando teve seu filho, o primeiro, de uma gestação difícil, mas tão amado e desejado. Nem todos aprovaram, mas ela o teve mesmo assim. Seria o cinema um temor para alguns? Uma origem difícil e rejeitada por tantos? Uma ilusão de movimento, sem cor e som, mas de certa forma, representação da vida? A mais fiel possível, talvez?

O filho acaricia a mãe, observa, ama. Ele confere se ela apenas dorme, teme sua morte. Sente pavor de perdê-la. Conseguirá ter vida própria? Conseguirá seguir sozinho? Deseja encontrá-la onde quer que esteja. Ele sofre. Necessita interagir, tocar, estar perto. Ele a repousa no jardim e mostra-lhe fotos. Metalinguagem? Uma foto vendo uma foto? Uma imagem vendo uma imagem?

E quando o movimento do filho cessa, o som permanece. A vida os envolve? A moldura da vida os acolhe nas folhagens e estradas. O filho passeia sozinho. Pensa. Reflete. Chora. Distancia-se. Quer fugir? Quer voltar? Saiu pra pensar?

E ainda que ele repouse, sempre há o som. Diegético e extra-diegético? Por vezes ele a carrega, mas sempre repousa. Descansa. Seria a confirmação do cinema como ilusão? Ilusão do movimento? Ao cessar da película, interrupção?

A mãe fala do medo da morte e ele fala que ela pode viver quanto quiser. Escolha sua? Inevitável morte? Ela questiona o porquê, ele explica que se vive por alguma razão: a razão de apreciar a vida. E quando pensamos que ele irá se libertar, ele retorna para seu lar, sua origem. Às vezes caminha, às vezes corre, e ainda que repouse, a vida os envolve.

No passar das nuvens e no balançar das árvores, numa borboleta ou numa mosca, sempre há vida. Sempre há movimento, além do filho. Ele é envolvido pelo movimento. Ele é movimento no movimento, mas também repouso. Assim como a mãe é enferma, e está sempre no limite da vida e da morte, como a fotografia, congelada no tempo, também está viva na memória. Ao ler uma imagem, podemos criar o movimento que quisermos. Podemos projetá-la para fora de campo e imaginar continuidade, composição, histórias. Temos o poder nas mãos de sermos eternos “leitores”!

A mãe morre. O filho sofre. Ele deseja encontrá-la. Algum dia. Será a morte do cinema? Ele pede paciência. Pede que ela o espere. Ele a chama. Ele repousa. E a vida....continua....

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