Numa tarde preguiçosa, eu estava assistindo mais um episódio de Law&Order (amo séries policiais), sobre um caso de acusação de um médico que praticava eutanásia nos pacientes. O advogado de defesa dizia, 'meu cliente é o novo Kevorkian' e fiquei intrigada com este sobrenome.
No mesmo dia, selecionando filmes para locação no site da Videoteca, deparei-me com este título "Você não conhece Jack", com a cara do Al Pacino estampada na capa. Parecia bom, e quando li a sinopse, deparei-me novamente com o mesmo sobrenome: Kevorkian.
Jack Kevorkian, foi um médico dos EUA, que auxiliou pacientes a cometerem suicídio, defendeu a eutanásia com unhas e dentes e foi absolvido em vários julgamentos, até ser condenado e cumprir uma pena de 8 anos, saindo da prisão com 79 anos. O médico morreu em junho deste ano, com 83 anos e sua trajetória de vida, rendeu-lhe o apelido de Dr. Morte. E durante mais de 120 minutos, conhecemos melhor sobre sua personalidade complexa e obstinada, as poucas pessoas leais que o rodearam, como a irmã e os amigos, e é a partir desta figura excêntrica, que o filme nos apresenta o debate polêmico sobre eutanásia.
A atuação impecável de Al Pacino neste filme, rendeu-lhe tanto o Emmy como o Globo de Ouro, e só por isso, já valeria a pena conhecer o trabalho. Mas o filme é recheado de boas surpresas e atuações. Fugindo daquele ritmo acelerado dos filmes de ação, aproxima-se muito mais dos filmes documentais, lentos, atentos aos personagens e diálogos ácidos, intercalados com imagens e depoimentos dos personagens-pacientes, construídos de forma realista, buscando na qualidade precária do VHS, sua construção estética.
Kevorkian era um homem inteligente, com senso de humor ácido (tipo House), objetivo, direto, obstinado e ao mesmo tempo, sensibilizado pela dor alheia. Viu sua mãe sofrer até morrer e lutou pelo direito de escolha dos pacientes, em estado terminal ou quadro irreversível. Ele oferecia uma oportunidade para pacientes determinados a acabar com sua dor, mas sem coragem de fazer sozinhos (ou não, em tentativas frustradas), tendo a ajuda de um médico, que de certa forma brinca de ser Deus ao salvar vidas ou driblar a natureza humana com remédios e tratamentos.
Para os extremistas, um assassino e lunático, e quando questionado por uma ativista, em determinada passagem do filme, se não tem religião ou não acredita em Deus, responde que seu Deus é Bach, o músico, pois afirma que este de fato existiu, já o Deus dos cristãos, é 'inventado'. Achei um sarro!!
Não sou cética e nem atéia, acredito em 'Deus' (palavra já utilizada pela humanidade e que facilita a comunicação) e no bem, mas não acredito em extremos, pois acho que ele provoca injustiças, muitas vezes causadas por fanatismos religiosos e de outros tipos (regimes totalitários, por exemplo). Nenhum fanatismo é saudável, talvez nem o de Kevorkian, que provoca a sociedade, ao agir acima da lei e pensar que sempre poderia sair ileso. Ao mesmo tempo, muitas das transformações da humanidade, foram ações acima ou contra a lei, quando consideradas injustas, inadequadas ou impróprias, portanto é realmente difícil opinar e decidir sobre a eutanásia e os assuntos relacionados ao tema, enquanto cidadã, ser social que participa ativamente de uma sociedade, e age de acordo com as leis.
Contudo, como pessoa, apóio a causa, pois acho que toda pessoa deveria ter a liberdade de escolha do que fazer do seu próprio corpo e vida, quando conquistada a emancipação. (sair dos cuidados de outrem, como no caso, ingressar na vida adulta). Optar em abortar ou não, em querer tirar a própria vida ou não, em arcar com as conseqüências dos seus atos, seja em vida, ou depois dela, diante do que nos espera, sem certeza de nada. Porque a sociedade tem que decidir por nós, só por não concordar conosco?!
E se tratando de casos extremos, com ajuda médica, apóio ainda mais, pois desde quando somos obrigados a sofrer e penar no final de nossas vidas?! Essa visão humana foi criada pelo cristianismo, quando inventou um Deus que desejava o sofrimento e a culpa humana. Quantas famílias se destróem ou são sugadas por uma doença que mata lentamente, evidenciando sentimentos de culpa, raiva, pena, dor?! Porque não partir deste mundo, deixando as melhores lembranças e melhores imagens?! Porque partir definhando, sem qualquer sopro de vida ou energia?!
Muitos alegam que é se fazer de Deus, decidir entre a vida e a morte, mas se considerarmos esta perspectiva, todo dia nos fazemos de Deus, ao tomar remédios e prevenir ou tratar doenças, fazer plásticas, modificando a natureza do corpo, ou até fazemos o contrário, destruindo nosso corpo com álcool, drogas, vícios e péssimos hábitos. Todo dia decidimos o rumo de nossas vidas, porque não podemos decidir como dar fim a ela?!
Kevorkian alega que em estado de coma, legalmente, orientado pelos médicos e decidido pelos responsáveis legais, o paciente inconsciente pode ter os aparelhos desligados, causando uma morte 'dolorosa', já que fica privado do ar e da alimentação, portanto uma morte indolor, em estado consciente, seria mais adequado, já que o paciente tem o direito de escolher.
A luta do médico se relaciona com seu próprio interesse pessoal, pois quando chegar a 'sua hora', gostaria de garantir este direito, de ter ajuda médica e decidir amenizar sua dor e sofrimento ao final da vida. Ele diz nos extras do dvd, "todos vamos morrer, eu, você, todos nós!" com muito bom humor. Um senhor simpático, engraçado, racional, ao mesmo tempo que sensível, da sua maneira, mas sensível. Alguém que não casou, não teve filhos, viveu envolto na medicina e na arte, ouvindo e tocando boa música, pintando quadros pavorosos, tentando sempre captar o sentimento humano diante do horror.
"Você tem que comunicar algo, ou a arte não faz sentido!'"Jack Kevorkian
Kevorkian me lembra até o 'Super-Homem' de Nietzsche, por não se rebaixar à culpa e humildade humana cravadas pelo cristianismo, por assumir e defender sua visão de mundo com obstinação. Isso também é ter fé e ter muita coragem! Acreditar em si mesmo e nos seus ideais! No final das contas é sobre isto que o filme fala, e é preciso ter a mente aberta (ou se esforçar para tal) para enxergar os dois lados da moeda, e ter a ousadia de posicionar-se, independente do lado. Talvez falte mais disso na sociedade, escolher 'um lado', o seu lado, e defendê-lo com unhas e dentes!
"Se sou um, é melhor estar em desacordo com o mundo do que estar em desacordo comigo mesmo!" Sócrates
Um comentário:
Sempre estaremos em nossas influências, que nos darão conclusões sobre determinados assuntos.
Alguns chamarão bom senso, outros acharão extremo.
O filme é sensacional, na medida que coloca a opinião exclusiva do médico, mas não deixa de abrir oportunidade para reflexão, se deve-se ou não admitir a eutanásia, ou deixar que o paciente autorize o médico a realizar um procedimento que lhe tire a vida.
Não podemos deixar de atentar para o fato de que TODA discussão será sempre influenciado pela formação do debatedor, passando por influências religiosas, políticas, sociais, etc.
O que se deve prezar, sempre, é o repeito à diferença.
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