O filme começa e ouvimos uma voz infantil, misturada às imagens que antecedem a história a ser contada, e se distraídos, não nos apegamos ao que está sendo falando, como foi o meu caso, e não percebemos a profundidade e importância dessa voz, tão infantil, mas tão profunda de reflexão.
Em seguida, conhecemos Hanna (Sarah Polly), uma mulher jovem, bonita, loira, magra, mas com hábitos extremamente mecânicos, de alguém que vive sem paixão, ou melhor, não vive, apenas sobrevive. Uma mulher totalmente passiva, mergulhada em monotonia, quase em estado catatônico, sem reação alguma sobre nada, com uma rotina permanente de "frango, arroz e maçãs".
O que há de errado com Hanna?! Tão jovem fisicamente, mas tão envelhecida interiormente, sem o frescor e calor típico da juventude.Como pode alguém tão jovem, ser tão amarga e alheia à vida, aos riscos, aos amores e aos abismos humanos?! Alheia até aos prazeres gustativos....(comer é bom!)
Sabemos que Hanna usa um aparelho auditivo, mas seria está a explicação para recusa? Não é justamente a deficiência de um sentido que realça os outros que restam? Porém, em Hanna, a surdez é sua fuga!
Nem nos passa pela cabeça, talvez, a profundidade de sua 'recusa' pela vida. Afinal, num primeiro momento, esta não parece ser uma realidade distante da nossa, de ínumeras Hannas ao nosso redor, com ou sem traumas de vida, mulheres, homens, crianças, jovens que vivem em permanente estado 'catatônico', ora causado pela total imersão nos meios de comunicação, usados como pontos de fuga, assim como o álcool, as drogas, o trabalho, o sexo, os jogos, os vícios também o são, ora vítimas de violências físicas, psicológicas e/ou sociais constantes.
Hanna é aconselhada a tirar férias, pois em tantos anos como funcionária de uma fábrica de produção de plástico, nunca faltou ou adoeceu. É a operária ideal e exemplar, diz seu chefe. Desempenha as atividades de forma precisa, mecânica, sem de nada reclamar. Seu chefe alega que por isso não pode demití-la, pois ela é sua melhor funcionária, mas algo está errado com ela. Os colegas de trabalho comentam. Falta algo de 'humano' talvez. É aí que ele tira da gaveta revistas de viagem e sugere que ela escolha fazer alguma coisa, qualquer coisa, quase como dizendo "vá viver um pouco, por favor". E ela 'vai'!
Ouvindo uma conversa alheia, de um homem que necessitava de uma enfermeira, ela se disponibiliza para tal função. São essas 'férias' que Hanna escolhe: cuidar de alguém. Manter a mente ocupada com algo produtivo, sem espaço para o ócio. E sua tarefa é cuidar de um homem com ferimentos e queimaduras, provocados por uma explosão, numa plataforma de petróleo, no meio do oceano.
O paciente é Josef (Tim Hobbins), parcialmente ferido e queimado, temporariamente cego, com a língua afiada e cheio de energia. O primeiro contato entre os dois já é íntimo, pois ele precisa fazer xixi e ao ajudá-lo, ele se aproveita para conhecê-la. Qual seu nome? Quem você é?! Da onde veio? (já que o sotaque é carregado) Qual a cor do cabelo? Ele a julga loira, pela voz doce, mas ela se diz ruiva. Ele brinca com a informação. E é entre o silêncio das palavras, que os dois se aproximam e estabelecem uma relação íntima. Ele a chama de Cora, pois Cora era uma enfermeira de uma história que leu em um livro curto (pois ele odiava os longos), fantasiada por um menino de 15 anos. Como não podia enxergá-la, ela a fantasia como um menino! Sua fantasia doce, ruiva, chamada Cora.
Um nunca fala verdadeiramente do outro. O que falam, é sempre fantasiado pela lembrança. Os dois se escondem atrás de suas dores. E quando Josef revela sua maior dor, aquela carregada de passado, Hanna demonstra compaixão e Josef a recusa, sentindo-se o pior do ser humano. E é nesta fragilidade, que Hanna nos explica sua passividade diante do mundo.
Ela conta sobre uma amiga, chamada Hanna, alegre e motivada a estudar e explorar o mundo, devoradora de livros e da vida, que diante do horror da guerra do seu país é capturada e se torna vítima de uma guerra já esquecida. No silêncio das palavras, conta que essa amiga foi violentada inúmeras vezes por muitos soldados, assim como outras mulheres como ela. Uma amiga que foi torturada para não gritar e se gritasse, era cortada em várias partes do corpo, e seus ferimentos recebiam sal, para lembrar que essa dor, era ainda maior que a do estupro.
E Hanna chora, dizendo como implorou pra essa amiga morrer rápido, a cada segundo, minuto que se passava diante de tanta dor e sofrimento. Hanna então cai nos braços de Josef, totalmente desconcertado e emocionado, e ele acaricia seu rosto. Ela abre sua blusa e coloca as mãos de Josef sobre as cicatrizes cruéis que marcam todo seu corpo. Ele então a chama pela primeira vez, de Hanna.
Diante do horror de uma guerra ou de qualquer situação-limite de extrema violência, viver não é mais uma escolha, pois o passado se torna sombra, e não sentir nada é a situação mais segura. Ocupar a mente é o melhor caminho. Comer "frango, arroz e maçã" não traz riscos. Mas é nessa nova experiência de vida, numa plataforma solitária no oceano, que Hanna descobre "nhoque, sorvete e creme de queijo", e que ainda existem pessoas motivadas pelas tentativas de mudança, que se arriscam a viver apaixonadamente, e Hanna as inveja. Não ter rumo ou destino, apenas uma determinação a seguir, mesmo que seja para qualquer lugar. É nesse desvio, nessa brecha, que Hanna se deixa entregar, mesmo quando se separa de Josef e retorna a sua vida monótona.
Hanna poderia continuar sobrevivendo da maneira que aprendeu, mas Josef não. Ela precisa dele, como experiência e risco, como fuga e desvio, mas 'fuga' da fuga que arranjou para si, num estado seguro e permanente de sensações ou não-sensações. Mas ele precisa ainda mais dela, como redenção e entrega, como equilíbrio, já que levou uma vida ao extremo da emoção, desrespeitando qualquer sentimento alheio, em busca do próprio prazer.
Duas pessoas em situações-limites incomparáveis. Vergonha e culpa. Como poderiam dar certo?! Não sabemos...Hanna tem medo de se afogar, mas Josef promete que 'aprenderá a nadar'! Os dois se abraçam...
E então a voz infantil retorna, como uma persona de Hanna, a voz que ela se esforçou para adormecer, sem certezas de quando poderia 'acordar'. O filme termina com Hanna sentada numa cadeira, bebericando água de um copo, numa cozinha diferente daquela cinza e de "frango, arroz e maçã". Dois vultos se aproximam, não sabemos quem são...e não importa. Hanna está diferente, um pouco...mas diferente.
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