por Alessandra Collaço da Silva
"Ensaio sobre o 'Ensaio'"
Não li o livro. Nunca ouvi falar da história até duas semanas. Um casal dizia que havia detestado. Eu sabia da existência do filme na pré-produção e um pouco da sua repercussão no Brasil. Coisas do tipo: diretor brasileiro, atriz famosa, locação em São Paulo e blabláblá. Desafio: assistir e entender porque aquele casal não havia gostado. Fiquei sem uma boa resposta. Não é um filme qualquer, não conheço nada para compará-lo. É forte e chocante. É um filme de gosto difícil. Não esperem puro entretenimento, pois não terão.
A história em si já é muito interessante pelas possibilidades metafóricas que ela invoca. Uma cegueira branca, inexistente no mundo "real", cegueira como epidemia, contagiosa e caótica. Uma história sobre o caos estabelecido e as reações das pessoas diante do caos. Um horror. Apavorante. Agoniante.
O que mais me impressionou foram as escolhas técnicas. A fotografia, por exemplo. Uns enquadramentos estranhos e aparentemente mal feitos, mas extremamente importantes. A câmera, de uma certa forma, produzia a sua própria cegueira. Estabilizava num lugar qualquer, como o olhar de um cego, que nada enxerga. A câmera funcionava como um olhar vago, muitas vezes sem se entreter com nada, mas um "nada" que posteriormente nos remete a algo. Algo como o tempo decorrido, através da transformação das frutas na casa do "Doutor e esposa". Ou um trecho de rosto, um pedaço de braço, uma lágrima escorrendo.
"É como nadar em leite". Além da fotografia, a cor opaca do filme é bem trabalhada, ressaltando a claridade e o branco excessivo. Os próprios fades brancos usados na transição dos planos, durante a contaminação, remetem-nos a cegueira acontecendo nos personagens. Tudo branco, tudo cego, tudo tão claro e excessivo. Tudo tão caótico e incerto. Meirelles ou quem quer que seja, escolheu estabilizar a câmera em objetos, móveis, paisagens brancas e estouradas. Essa transição nos dá a idéia de "enquanto isso": enquanto um oftamologista fica cego, a criança também fica.
"Claridade excessiva". O branco, a cor opaca, a saturação, o contraste, o desfoque, as transições, etc., todas estas escolhas se tornam importantes pra condução da narrativa, pra história, pro filme, pra adaptação do livro de Saramago (que eu não li) e pra agoniante sensação de cegueira repentina e inexplicável. A imagem tão bem trabalhada, entre foco e desfoque torna-se parte da escolha de como contar uma história tão chocante, e peça fundamental pra sensação do espectador diante da epidêmica cegueira.
"Em terra de cego, quem tem um olho é rei! (ou quem é "cego" também.)" e "Dê poder ao homem que conhecerás teu cárater". Os personagens não tem nome, sua profissão não importa, nem sua vida passada, mas todos tem seus valores. Bons ou ruins.
Descobrimos entre os cegos contaminados, um cego de nascença. Um dos líderes da Ala 3. Ala que impõe suas vontades e tiram de outros, o pouco que lhes resta: a dignidade. Este cego é "Rei". Ele passou a vida "enxergando" pelos cheiros, pelos sons, pelo tato. Ele sabe determinar quando algo é ou não de valor. Ele reconhece alguém pelo cheiro ou pelo som. Este cego enxerga.
E a "esposa do doutor"? Será que não desejava a cegueira? Será que queria ver as pessoas se transformarem em monstros, por comida? Vê-las perder a dignidade? Ver a feiúra do ser humano, tanto fisicamente quanto metaforicamente? Ela não foi "Rei". Não queria ser, até precisar. Ela enxergava, mas de uma certa forma, era cega. Submissa e generosa. Liderou o grupo, aprendeu a conviver, a aceitar e a adaptar-se. Acostumou-se. Mas precisou matar e ameaçar para sobreviver com sua dignidade. E quando percebeu que a cegueira poderia ser reversível? Ficou feliz?
A sensação é de incerteza. De incapacidade e impotência. De caos e horror. "Deus converteu São Paulo através da cegueira. (...) Essa cegueira não é coisa de Deus." Irônico? O caos até poderia ser obra de Deus. Mas nossas atitudes são nossas escolhas.
Estamos cegos?
"Ensaio sobre o 'Ensaio'"
Não li o livro. Nunca ouvi falar da história até duas semanas. Um casal dizia que havia detestado. Eu sabia da existência do filme na pré-produção e um pouco da sua repercussão no Brasil. Coisas do tipo: diretor brasileiro, atriz famosa, locação em São Paulo e blabláblá. Desafio: assistir e entender porque aquele casal não havia gostado. Fiquei sem uma boa resposta. Não é um filme qualquer, não conheço nada para compará-lo. É forte e chocante. É um filme de gosto difícil. Não esperem puro entretenimento, pois não terão.
A história em si já é muito interessante pelas possibilidades metafóricas que ela invoca. Uma cegueira branca, inexistente no mundo "real", cegueira como epidemia, contagiosa e caótica. Uma história sobre o caos estabelecido e as reações das pessoas diante do caos. Um horror. Apavorante. Agoniante.
O que mais me impressionou foram as escolhas técnicas. A fotografia, por exemplo. Uns enquadramentos estranhos e aparentemente mal feitos, mas extremamente importantes. A câmera, de uma certa forma, produzia a sua própria cegueira. Estabilizava num lugar qualquer, como o olhar de um cego, que nada enxerga. A câmera funcionava como um olhar vago, muitas vezes sem se entreter com nada, mas um "nada" que posteriormente nos remete a algo. Algo como o tempo decorrido, através da transformação das frutas na casa do "Doutor e esposa". Ou um trecho de rosto, um pedaço de braço, uma lágrima escorrendo.
"É como nadar em leite". Além da fotografia, a cor opaca do filme é bem trabalhada, ressaltando a claridade e o branco excessivo. Os próprios fades brancos usados na transição dos planos, durante a contaminação, remetem-nos a cegueira acontecendo nos personagens. Tudo branco, tudo cego, tudo tão claro e excessivo. Tudo tão caótico e incerto. Meirelles ou quem quer que seja, escolheu estabilizar a câmera em objetos, móveis, paisagens brancas e estouradas. Essa transição nos dá a idéia de "enquanto isso": enquanto um oftamologista fica cego, a criança também fica.
"Claridade excessiva". O branco, a cor opaca, a saturação, o contraste, o desfoque, as transições, etc., todas estas escolhas se tornam importantes pra condução da narrativa, pra história, pro filme, pra adaptação do livro de Saramago (que eu não li) e pra agoniante sensação de cegueira repentina e inexplicável. A imagem tão bem trabalhada, entre foco e desfoque torna-se parte da escolha de como contar uma história tão chocante, e peça fundamental pra sensação do espectador diante da epidêmica cegueira.
"Em terra de cego, quem tem um olho é rei! (ou quem é "cego" também.)" e "Dê poder ao homem que conhecerás teu cárater". Os personagens não tem nome, sua profissão não importa, nem sua vida passada, mas todos tem seus valores. Bons ou ruins.
Descobrimos entre os cegos contaminados, um cego de nascença. Um dos líderes da Ala 3. Ala que impõe suas vontades e tiram de outros, o pouco que lhes resta: a dignidade. Este cego é "Rei". Ele passou a vida "enxergando" pelos cheiros, pelos sons, pelo tato. Ele sabe determinar quando algo é ou não de valor. Ele reconhece alguém pelo cheiro ou pelo som. Este cego enxerga.
E a "esposa do doutor"? Será que não desejava a cegueira? Será que queria ver as pessoas se transformarem em monstros, por comida? Vê-las perder a dignidade? Ver a feiúra do ser humano, tanto fisicamente quanto metaforicamente? Ela não foi "Rei". Não queria ser, até precisar. Ela enxergava, mas de uma certa forma, era cega. Submissa e generosa. Liderou o grupo, aprendeu a conviver, a aceitar e a adaptar-se. Acostumou-se. Mas precisou matar e ameaçar para sobreviver com sua dignidade. E quando percebeu que a cegueira poderia ser reversível? Ficou feliz?
A sensação é de incerteza. De incapacidade e impotência. De caos e horror. "Deus converteu São Paulo através da cegueira. (...) Essa cegueira não é coisa de Deus." Irônico? O caos até poderia ser obra de Deus. Mas nossas atitudes são nossas escolhas.
Estamos cegos?
Um comentário:
Adorei Ally! Melhor é escutando tu lendo!
Adoro o jeito que tu escreve, não para nunca. A prática leva a perfeição.
Nascesse pra isso xuxu!
P.s.: deu até vontade de ver o filme de novo!
=***
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